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A (in)visibilidade da violência patrimonial e o desafio das escusas penais

A violência patrimonial — que se materializa na subtração, retenção ou destruição de bens, documentos e valores da mulher pelo marido/companheiro ou familiares — é frequentemente abafada por dispositivos legais que perpetuam privilégios masculinos em nome da “paz doméstica”.

Entre os obstáculos mais evidentes está a aplicação das chamadas escusas penais absolutórias previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal, que preveem imunidades legais para crimes contra o patrimônio praticados em ambiente familiar ou conjugal. Como bem pontua Mário Luiz Delgado, o efetivo combate à violência patrimonial contra a mulher fica especialmente comprometido em decorrência daquelas imunidades, pois a permanência e aplicação cega dessas normas contribuem diretamente para a impunidade nos casos de violência patrimonial e reforçam desigualdades históricas.

Ambos os artigos constituem aquilo que o Protocolo de Gênero alude como “normas indiretamente discriminatórias”. O artigo 181, por exemplo, isenta de pena quem comete crimes patrimoniais contra cônjuge, ascendente ou descendente, desde que sem violência ou grave ameaça. Essa abordagem reflete a valorização da unidade familiar e a crença na coesão doméstica como pilar da sociedade.

Já o artigo 182 faculta ao titular do bem decidir se quer representar criminalmente em relação a outros parentes (como tio, sobrinho, cunhado), estabelecendo a condição de procedibilidade pela representação. E, por fim, o artigo 183 estabelece que tais imunidades não se aplicam quando há violência ou grave ameaça à pessoa.

Em teoria, essas normas visam preservar a harmonia familiar e evitar a intervenção penal em conflitos domésticos banais. Contudo, na prática, elas geram uma desproteção estrutural à mulher vítima de violência patrimonial, especialmente nos casos em que a relação abusiva é marcada por controle financeiro, dependência econômica, coação moral e manipulação dos bens comuns ou particulares.

Parte da doutrina entende que a isenção de pena prevista no artigo se justifica pela ideia de que o Estado deve evitar a punição de crimes que ocorrem no âmbito familiar, uma vez que isso poderia agravar ainda mais a situação de conflito e desavença entre os membros da família, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, a proteção conferida pela norma estaria alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à família.

Mário Delgado, de forma contundente, demonstra que tais imunidades operam com uma premissa falaciosa: a de que as relações familiares são espaços simétricos, apaziguados e pautados na reciprocidade. No entanto, no Brasil, as estatísticas revelam um padrão alarmante: a maioria esmagadora das violências domésticas — inclusive as patrimoniais — é praticada por homens contra mulheres. Ainda vivemos em uma sociedade que associa o homem à figura do provedor e a mulher à posição de dependente, o que propicia um terreno fértil para a instrumentalização do patrimônio como forma de dominação.

Sob esse contexto, a escusa penal não é apenas uma técnica legislativa ultrapassada: é uma expressão normativa de um sistema que revitimiza a mulher ao negar-lhe a titularidade plena sobre seu patrimônio. Negar-lhe a possibilidade de responsabilizar judicialmente o autor da lesão patrimonial equivale a negar-lhe autonomia econômica, perpetuando o ciclo de dependência e submissão.

Frente à inércia legislativa, o Protocolo de Gênero surge como uma resposta contra-hegemônica, oferecendo às magistradas e magistrados a ferramenta do controle de convencionalidade, para submeter os artigos 181 e 182 do Código Penal ao crivo dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres, especialmente a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil.

Nesse ponto, destaca-se a Recomendação CNJ nº 128/2022, que obriga o Poder Judiciário a verificar, em cada caso concreto, a compatibilidade entre normas internas e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. A mensagem é clara: a aplicação automática de imunidades legais viola frontalmente o dever estatal de prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher.

A ADPF 1.107, recentemente julgada pelo STF, reforça esse entendimento. No voto condutor, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, há uma afirmação categórica da necessidade de observância do Protocolo de Gênero como instrumento vinculante para o Judiciário, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e criminal dos agentes públicos que descumprirem os compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional. Sua manifestação reconhece que a neutralidade judicial, diante de estruturas opressoras, é cumplicidade com a violência institucional.

A escusa só é afastada, nos termos do artigo 183 do Código Penal, quando há violência ou grave ameaça à pessoa. Porém, esse critério revela-se insuficiente no enfrentamento da violência patrimonial, que se manifesta, na maioria das vezes, sem marcas visíveis, mas com efeitos profundos: retenção de cartões bancários, ocultação de bens comuns, não pagamento de pensão alimentícia, uso indevido dos recursos da vítima, venda de bens do casal sem consentimento, entre outras formas de subjugação econômica.

Portanto, o desafio hermenêutico que se impõe é o de reconhecer que a violência patrimonial, quando utilizada como meio de dominação e coação, configura violência contra a pessoa da mulher, afetando diretamente sua dignidade e liberdade. Nessa ótica, a interpretação do artigo 183 deve ser feita à luz do artigo 7º, IV, da Lei Maria da Penha, que reconhece expressamente a violência patrimonial como forma autônoma de violência doméstica.

A insistência do Poder Judiciário na aplicação formalista dos artigos 181 e 182, sem considerar o contexto de gênero, constitui uma omissão discriminatória e uma violação aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

Por isso, a aplicação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero não deve ser vista como faculdade interpretativa, mas como imperativo jurídico de efetivação dos direitos humanos das mulheres. No campo penal, especialmente, essa lente crítica permite romper com a lógica de impunidade que invisibiliza a violência patrimonial e silencia tantas mulheres em suas dores mais íntimas.

Reinterpretar as escusas penais à luz dos tratados internacionais e da Lei Maria da Penha é, portanto, uma tarefa urgente e inadiável. Utilizar o controle de convencionalidade como ferramenta emancipatória é reconhecer que a neutralidade formal do Direito não basta quando ela perpetua a injustiça substantiva. Só assim será possível transformar o sistema de justiça em um espaço de escuta, acolhimento e responsabilização, inclusive na seara patrimonial, onde tantas mulheres seguem sendo invisibilizadas e violadas em seus direitos mais elementares.

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