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Cachorro mordido por cobra tem medo até de linguiça.

Para quem é criminalista, não existem casos grandes e casos pequenos. As grandes operações e os casos individuais trazem a mesma angústia. O cárcere representa para o paciente, família e advogado a mesma sensação, sobretudo quando a prisão é ilegal.

É como se todos estivessem presos. Tudo começa com o cumprimento dos mandados. O telefonema de madrugada, como se alguém de sua família estivesse dando entrada numa sala de cirurgia e você fosse o cirurgião. A correria para atender à família, acompanhar a prisão, a audiência de custódia e a transferência para o presídio. Nesta hora você deixa de ser médico e passa a ser um passageiro da agonia.

Para de comer ou come o dobro, para de falar e até mesmo de interagir com sua família, inclusive e principalmente se a prisão ocorrer na sexta feira. Dali para frente, seu final de semana e suas semanas seguintes só possuem um sentido. Ser útil na administração da Justiça. Fazer valer seu juramento e ser um pequeno grande lutador.

Esperar uma decisão liminar em um Habeas Corpus, para quem tem compromisso com o que faz, é para os fortes.

Pois bem. Para quem tem fé em Deus e sabe que ele conversa conosco, as coisas acontecem no seu tempo. Nunca no nosso.

Esta semana foi singular, porque ao tempo em que acompanhamos a discussão no STF sobre o juiz de garantias, introduzido na legislação processual penal, via pacote anticrime, nossa banca teve dois clientes injustamente presos.

O que parecia ser uma discussão tão distante de nós, veiculada pela TV, atropelou nossas vidas como um carro sem freios, ladeira abaixo.

Um casal, que teve a infelicidade de ver contra si um decreto de prisão, que poderia ter sido evitado, simplesmente se a lei que já vale fosse cumprida, certamente o seria, caso o juiz de garantias estivesse em vigor.

É que o juiz natural do caso, recentemente, numa investigação que apura crime semelhante, demorou a decretar a prisão e o réu fugiu.

E aí, é o seguinte: “Cachorro mordido por cobra tem medo até de linguiça.” (Dito popular).

Este ingrediente foi suficiente para o que fosse pedido pela autoridade policial, seja como fosse pedido, desde que tivesse a premissa risco de fuga do investigado, fosse deferido contra nossos clientes, mesmo que nada de concreto tenha sido ao menos checado.

Pior. Como disse, o caso está em andamento e sobre ele não podemos falar, mas o fundamento de custódia não existia a não ser na mente da polícia e do juiz, induzido pelo temor da polícia, que não trabalhou tecnicamente.

A discussão não é uma sessão de terapia em grupo, nem se presta a discutir esta prisão, que certamente será revogada. É mais ampla e muito mais abrangente, apesar de sabermos e termos a real dimensão de que somos apenas mais alguns advogados lutando apenas pelo que é justo, nos limites de apenas mais um simples inquérito policial.

O fato é que em muitos casos e neste não foi diferente, apesar de solicitarmos acesso aos autos e colocarmos clientes à disposição das autoridades, para esclarecer o que fosse preciso, documentos foram sonegados do inquérito, em franca e flagrante afronta ao que preveem súmulas, estatutos, tratados de direitos humanos e resoluções, que valem muito no papel, mas muito pouco na vida das pessoas. As consequências do descumprimento, para as autoridades, nenhuma! Para o cidadão, a cadeia! O Direito precisa sair do papel.

Muitos nesta altura dirão. O que importa se são sonegados documentos? Quem está respondendo a uma investigação com certeza está devendo algo e o Estado não deve ser leal com quem não é leal com o Estado, certo? Talvez para os culpados isso fizesse sentido, mas nem todos são culpados e é aí que mora o problema. Como saber que a pessoa é culpada se o processo nem começou? Dando acesso aos autos e permitindo esclarecimentos prévios talvez fosse uma boa. Talvez seja o que a sociedade deseja. Talvez seja o que todos os nossos amigos e parentes merecem. Até quando iremos suportar que façam com os outros o que não desejamos para nós? A resposta é: até que aconteça conosco e ai será tarde.1

O fato é que não ter tido acesso a documentos, ao arrepio da lei, que já vale, e a não implementação do juiz de garantias (a ser julgada pelo STF), que retiraria o peso das costas do juiz, que já viu o filme parecido antes, pudesse ser vital para evitar que pessoas vão para cadeia (encaminhados a presídios, para ocuparem celas comuns e com seus cabelos e dignidade violados antes de qualquer formação de culpa) simplesmente porque o não prender, mesmo sem fundamento idôneo, possa parecer sinal de inércia/ condescendência com a criminalidade.

A vida é feita de escolhas e cada escolha implica uma renúncia, parafraseando Chorão (vocalista do Charlie Brown Jr.). Julgar vidas humanas não é nada fácil. Saber que sua decisão pode colocar ou tirar pessoas do inferno na terra exige estudo, preparação e dedicação. É uma profissão que merece todo respeito da sociedade e certamente é também uma vocação quase sacerdotal. Falo isso sem pretensão de doutrinar. Sou um observador do sistema judicial há quase 25 anos. A maioria dos juízes que conheço é comprometida, honesta e ética. Trabalha até nos finais de semana, em casos em que se vislumbra injustiça. Faz sua parte para mudar seu mundo!

É que ser juiz e mandar prender ou fechar empresas seduz e é fácil. Pegar um caso e mandar soltar assusta. Exige coragem. Onde se apegar? Na lei! É um segredo, que parece óbvio. Mandar soltar hoje parece um sacrilégio. Vivemos tempos terríveis. Nem todos possuem boa intenção. Aliás, no inferno o que mais existe é boa intenção, segundo meus avós. Nosso passado recente como nação deve ser lembrado para jamais ser esquecido! Seja de qual lado da história posicionem-se, todos querem esquecer os acontecimentos, que até hoje assombram o judiciário e começam a atropelar a vida dos comuns. Uns porque sofreram seus terrores e outros porque viram que muito do que podia ser apurado perdeu-se em meio a nulidades e arbitrariedades, abalando a crença do cidadão na justiça, por conta de justiçamentos2. Grandes Ministros, para dar exemplos contemporâneos, que viveram este período nefasto, Nefi Cordeiro e Sebastião Reis, do STJ (conhecido como tribunal da cidadania), já advertiram que o juiz não é justiceiro, não cabendo a ele combater o crime. Cabe ao juiz julgar, com imparcialidade e independência, seguindo sua consciência e a lei. Isso já seria maravilhoso!! Este é o preço para viver em Democracia e, não sou eu quem disse, mas foi o Ministro Marco Aurélio, do STF, que é um preço módico3 .

E é com este pensamento, que encerro está pequena reflexão, esperando ainda a prolatação de decisão, que coloque as coisas em seu lugar, pelo menos para uma família comum, de uma cidade comum do Brasil, que construiu sua vida com trabalho e dedicação, sabendo que ninguém acima da lei, mas que nenhum brasileiro é menos brasileiro que outro.

Seguiremos firmes, mesmo que muitas vezes sintamos o baque, mas a fé só se prova em momentos difíceis e que Deus possa estar com todos que tem fome de Justiça.

Quero deixar para meus filhos um exemplo de coragem e de confiança de que podemos muito pouco, mas podemos algo frente às dificuldades do mundo e elas sempre chegam. Quase sempre não podemos fazer nada, mas ficar de pé, já pode ser muito. Que o juiz de garantias seja implementado e que este salto de qualidade de vida possa ser deixado a todas as famílias brasileiras.

Antonio Tide – Advogado Criminalista em Pernambuco – Procurador Municipal e Corregedor-Geral de Olinda/PE – Membro da Comissão de Direito Penal Econômico do Conselho Federal da OAB e Professor.

1 https://www.pensador.com/frase/NzMyNzYz/ – Um dia vieram e levaram meu vizinho …

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