No cenário contemporâneo das investigações criminais envolvendo crimes financeiros, poucos dados revelam, com tanta clareza, a magnitude da transformação ocorrida, quanto o vertiginoso crescimento nos pedidos de acesso aos Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) junto ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Em 2024, apenas às polícias civis atingiram a marca de 13.667 solicitações, um aumento de 114% em relação a 2021, quando foram contabilizadas 6.375 requisições. O Ministério Público nos âmbitos estaduais também incrementaram a atuação: O salto foi de 1.629 para 1.864 pedidos no mesmo intervalo. Já a Polícia Federal saltou de 4.897 para 6.803 solicitações anuais, um acréscimo de 39%. Os alvos dessa ofensiva investigativa? Crimes de corrupção, tráfico de drogas, fraudes financeiras e a atuação de facções criminosas – o cerne da macrocriminalidade nacional.
Esses números, além de expressivos, são, ao mesmo tempo, sintoma e causa de um novo paradigma: evidenciam, de um lado, a confiança depositada nas informações do Coaf como instrumentos cruciais de investigação; de outro, acirram o debate sobre os limites do poder investigativo e o imperativo da proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
A narrativa oficial, capitaneada por delegados e membros do Ministério Público, defende com veemência o acesso direto aos RIFs sem necessidade de autorização judicial. Sustenta-se que tais relatórios, por não representarem quebra de sigilo bancário em sentido estrito, não violariam a privacidade constitucionalmente assegurada e, ainda, que a submissão a prévio controle judicial retardaria investigações, favorecendo a dissipação de recursos ilícitos e comprometendo a efetividade do enfrentamento à criminalidade sofisticada.
Subjaz a essa lógica uma convicção operacional: velocidade é fator determinante para desarticular esquemas complexos de lavagem de dinheiro e rastrear fluxos ilícitos antes que desapareçam em uma teia de transações e contas paralelas. Não surpreende, assim, que em muitos estados não exista sequer um controle centralizado das solicitações ao Coaf. Em unidades federativas como Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso, Minas Gerais, Piauí e Santa Catarina, delegados detêm autonomia plena para decidir, a partir do inquérito policial, quando e como acionar o órgão de inteligência financeira.
No entanto, o risco de desvio é real e crescente. Como é de conhecimento dos colegas criminalistas, que militam na área, é preocupante a proliferação de investigações “de fachada” – “inquéritos pro forma” abertos apenas para conferir aparência de legalidade ao pedido de dados, além de casos de abusos e até chantagens ancoradas na ameaça do uso estratégico desses relatórios. Como bem adverte o professor Pierpaolo Bottini, o risco latente reside no emprego indiscriminado de uma ferramenta investigativa poderosa demais para ser normalizada no cotidiano.
No coração dessa controvérsia pulsa um autêntico cabo de guerra jurisprudencial, travado entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), cada qual sustentando teses opostas e robustas. O STF, ao julgar o Tema 990 em 2019 (RE 1.055.941), afirmou a possibilidade de o Coaf e a Receita Federal compartilharem espontaneamente dados sigilosos com órgãos de investigação, sem necessidade de autorização judicial, desde que observados: (i) sigilo; (ii) existência de procedimento formalmente instaurado; (iii) possibilidade de controle judicial posterior; e (iv) uso de canais oficiais.
Decisões recentes ampliaram ainda mais essa interpretação: ministros, a exemplo de Cristiano Zanin, admitiram que o acesso às informações pode ser provocado não só pelo órgão de inteligência, mas também diretamente pelos investigadores, dispensando o filtro judicial.
Em 2024, a Primeira Turma do Supremo consolidou esse entendimento, chancelando o chamado “atalho investigativo”: bastaria o pedido do órgão investigante para que o Coaf fornecesse o relatório, sem qualquer controle judicial prévio. Esse movimento contribuiu para a explosão dos números de RIFs por encomenda – em apenas dez anos, o aumento foi de 1.300% nas solicitações do gênero.
O STJ, porém, impôs um freio institucional. Em decisão paradigmática da Terceira Seção, fixou-se que polícia e Ministério Público não podem solicitar RIFs sem prévia autorização judicial. O fundamento é duplo: constitucional, para proteger o direito fundamental à privacidade e à autodeterminação informativa; e pragmático, para impedir que instrumentos excepcionais sejam convertidos em regra, abrindo espaço para práticas abusivas. O ministro Messod Azulay Neto, relator do RHC 196.150, sustentou que o art. 15 da Lei de Lavagem de Capitais não autoriza pedidos diretos aos órgãos de inteligência, reconhecendo a validade da comunicação espontânea, mas vedando o caminho inverso sem chancela judicial.
A consequência foi imediata e contundente: provas derivadas de RIFs solicitados diretamente foram anuladas, embora os processos penais não tenham sido automaticamente extintos. O Judiciário reafirma, assim, seu papel de guardião da linha tênue entre a busca legítima de provas e a devassa indevida dos dados pessoais.
Para alguns, é sedutor imaginar que, diante do crescimento exponencial da macrocriminalidade e da sofisticação dos mecanismos de lavagem de dinheiro, toda ferramenta que amplifique a eficácia investigativa deva ser liberada e utilizada sem amarras. Contudo, a história do processo penal brasileiro é repleta de exemplos de abusos praticados sob a justificativa da eficiência. O risco da banalização de práticas invasivas é cristalino: a ausência de controle judicial pode transformar exceções em regras, instaurando um ambiente de permanente estado de exceção, onde o devido processo legal, a presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana tornam-se valores frágeis diante do ímpeto punitivista.
O posicionamento do STJ, neste contexto, emerge como a interpretação mais prudente e fiel ao Estado Democrático de Direito. Não se trata de enaltecer a burocracia judicial, mas de reconhecer que, em uma democracia substancial, a autorização judicial prévia constitui expressão máxima do princípio da reserva de jurisdição, pedra angular da proteção individual. Uma vez acessados, dados pessoais dificilmente podem ser “desvistos”, razão pela qual o controle judicial não é mero ritual vazio, mas salvaguarda real contra abusos.
Ademais, a inexistência de controle centralizado dos pedidos em muitas unidades federativas só aumenta o potencial de arbitrariedades. Onde impera a autonomia absoluta dos delegados para requisitar informações ao Coaf, cresce o risco de perseguições seletivas, investigações abertas apenas para conferir verniz de legalidade à devassa de dados, e a escalada de desconfiança em relação às instituições de controle.
A ampliação do acesso direto aos RIFs pode, assim, transformar o remédio em veneno: o combate qualificado à criminalidade pode ceder lugar à perseguição infundada, à violação generalizada da privacidade e, no limite, ao descrédito do sistema de justiça. O STJ, ao exigir a autorização judicial, não fragiliza a luta contra o crime, mas resguarda o devido processo, colocando um necessário freio na sanha investigativa do Estado.
A pressão por flexibilização de controles, vinda inclusive de instituições de prestígio como o Ministério Público Federal, exige vigilância crítica. Cada exceção aberta em nome da “guerra” ao crime representa uma brecha por onde pode infiltrar-se o arbítrio. Até que o STF pacifique a questão – um desfecho ainda distante, apesar do reconhecimento da repercussão geral no RE 1.537.165 –, a posição do STJ deve ser mantida e defendida, pois representa a leitura mais comprometida com a preservação das garantias fundamentais.
No contexto atual, marcado por recordes de pedidos de RIFs, ausência de mecanismos de controle em muitos estados, divergências jurisprudenciais e uma sociedade ávida por respostas rápidas ao crime, o processo penal brasileiro é desafiado a manter o equilíbrio. É preciso combater o crime, sim, mas jamais perder de vista que a democracia se mede, sobretudo, pela capacidade de proteger os direitos de quem é investigado – mesmo (e principalmente) quando todos parecem exigir soluções sumárias.
Em tempos de avanços tecnológicos e investigações digitais, a fronteira entre inteligência e devassa nunca foi tão tênue. E quem cuida da fronteira precisa estar acima das paixões do momento.
